Essa crônica tem uma história muito mágica dos bastidores :) Eu a escrevi quando frequentava o Templo Zu Lai! Uma vez depois da meditação eu encontrei com a minha mãe na lanchonete e ela estava olhando fixo para um garoto que tinha um jeito típico de quem sofre de algum tipo de distúrbio psicológico. Bem, eu quis dar uma daquelas de detetive do CSI e comecei a observar o comportamento do garoto. Falei que ele devia ser autista, filho daquele homem que sempre andava sozinho pelo templo e que o pai dele deveria ser separado da esposa (juro, baixou a vidente em mim naquele momento)! No mesmo dia escrevi esse texto e ficou por isso mesmo! Depois de alguns meses minha mãe virou amiga do pai do menino e descobriu que ele era mesmo autista e que os pais haviam se separado haviam alguns meses! Juro, foi um momento mágico na minha vida. E aí está o texto que escrevi naquele dia. Espero que gostem! :)
Maurício era um menino introvertido e galante. Não no sentido de elegante e lustroso, mais para o sentido cavalar. Tinha a mania de andar em saltos e de bater a sola dos pés de uma forma desagradável e presunçosa; seu nariz era muito grande e parecia ter dificuldades para apaziguar os traços grosseiros do queixo; os olhos, entre o torto e o mal distribuído, eram fundos e ganhavam maior dimensão graças ao grau estrondoso dos óculos. Era um rapaz inteligente, mas ninguém o sabia. Tinha sido diagnosticado com autismo desde os três anos e depois disso não saíra dos remédios psiquiátricos. Chegava a tomar quatro por dia para prolongar o efeito de alienação que sua mãe chamava de cura.
O menino podia até ser carismático, se não fosse criado como um doente. Maurício nunca cursara uma escola, vivia de aulas particulares ministradas por sua mãe; dificilmente saía do jardim de casa e quando o fazia tinha que ser acompanhado por Sandra; nunca aprendera a andar de bicicleta ou mesmo a jogar bola; sua mãe não deixava uma televisão em seu quarto, pois tinha medo que ele não soubesse interagir com os controles ou até mesmo os deglutisse; tinha uma piscina na qual não entrava por receio de morrer, embora nunca tivesse dado muita atenção para a morte, afinal até ali ele jamais a sentira. Mas retraído em toda essa camada de proteção residia um Maurício tímido, impotente e cheio de desejos contrários à sua doença.
Com cinco anos aprendeu a ler e passou a procurar informações sobre o seu mau naqueles livros vermelhos da sala de seu pai. Tinha a mania de colecionar pedras e logo passou a reconhecer suas origens, estudar sua geologia e escondê-las no armário. Era um rapaz muito culto e em menos de dois anos já havia consumido todos os livros de sua casa, dos romances às receitas, dos técnicos às enciclopédias. Das aulas de sua mãe tirava pouco proveito e muitas vezes ria prepotente da ignorância da matriarca. Conhecia todos os planetas, mas não sabia bem onde ficavam, a verdade é que o rapaz tinha medo das estrelas, tinha medo, pois via nelas a luminescência do olhar humano que pulsa oscilante entre o extraordinário e o ausente. E do olhar humano ele pouco sabia. Sentia-se envergonhado e acima de tudo humilhado por não olhar as pessoas nos olhos. De tudo o que lera nos livros não aprendera nada sobre os sentimentos dos homens, para estes não havia fórmulas, eram todos aleatórios e circunstanciais e o jovem Maurício tinha grandes dificuldades para compreender circunstâncias. Podia ficar horas deliciando-se com um artigo científico, enquanto sua mente apresentava grande resistência para as novelas. O rapaz não se conformava como o precursor das ciências, das exatas, podia entregar-se tão facilmente ao biológico, ao humano. Como um homem podia em toda a sua sabedoria criar nomes extravagantes e vagos para aquelas sensações que ele, Maurício, jamais sentira.
Mas nos últimos anos o jovem percebera um tipo de oscilação em seu comportamento, talvez porque ele envelhecera, tinha agora vinte, e sua mãe finalmente o deixasse sair sozinho; ou até mesmo pelo excesso de romances que se viu obrigado a ler nos últimos anos. O moço sentia, não, não é bem esse o verbo, desconfiava que algo havia mudado. Vez ou outra lhe invadia uma forte vontade, como um calafrio que se prende ao dorso antes de se dissipar na nuca, de falar com Sandra, de explicar-lhe todas as matemáticas, de mostrar-lhe tudo que entendia; queria chamar-lhe para si, mas toda vez que levantava a boca a fim de lhe dirigir a palavra, suas mãos tremiam, suas costas trincavam e os olhos embaçavam encabulados, apenas com a conjectura de lhe encarar a face. Não sabia se a moça era bonita, pois não aprendera a fazer essa distinção. Sabia que Sandra era morena, de quadris finos e mãos triangulares. Sabia também que algo crepitava em seu quadril, toda vez que ela dirigia-lhe a palavra e ele queria poder dar um nome científico para isso.
Algumas outras vezes tentou se aproximar da moça, mas seu esôfago parecia se fechar com uma força grotesca e sobrenatural, como um enorme ímã atraindo um minúsculo metal, e mesmo seus mais dignos esforços não eram capazes de quebrar esse magnetismo que paralisava-lhe todo o corpo quando tentava agir como gente. Talvez só agora ele compreendesse que era mesmo um doente.
Sozinho no quarto Maurício sentiu algo morno e úmido vazar-lhe dos olhos, estes a que tanto temera. Tentou encarar seu reflexo na janela, mas tinha medo do que veria. Sandra abriu vagarosamente a porta, como se não quisesse interromper o espetáculo. Ficou alguns minutos fitando a imagem transmutada de Maurício no vidro e em um único gesto desgovernado agarrou-lhe as extremidades do queixo, levantou aqueles olhos febris em direção aos seus e disse soluçante:
- Você está chorando, me entende Maurício? Isso que você está fazendo agora...Você está chorando!
Exclamativa e alegre, Sandra tomou Maurício nos braços, beijou-lhe a testa, como se beija um recém-nascido e encarou alegremente o caminho tortuoso das lágrimas no queixo do rapaz. E foi quando Maurício, agora mole e entregue àqueles braços macios, viu como eram lindos os olhos estrelados de Sandra que decidiu dar um nome científico para aquilo: paixão.